sábado, 29 de fevereiro de 2020

E se as aves forem estúpidas?



Li atentamente o que tem sido publicado nos media. E fiquei preocupado, mas simultaneamente contente, depois irritado e finalmente aliviado. E sobretudo senti-me ignorante!

Antes de continuar, permitam que me apresente, para que depois se perceba como um vulgar mortal como eu sentiu um misto de tantas emoções antagónicas, seguramente o resultado de alguma miscelânea que ingeri fora de casa: sou licenciado em Biologia, professor dessas matérias e com alguns canudos, entre os quais um diz que tenho uma especialidade em Biologia da Conservação.
Portanto, como se vê, muito diferente das superiores qualificações dos governantes com capacidade para decidir nestas matérias, mas com uma coisa em comum: também estou na política, pois sou deputado independente na Assembleia Municipal de Lisboa, onde aguardo que os meus pares aprovem a realização de um debate sobre o dito aeroporto complementar do Montijo, que propus ainda a Arquitecta Helena Roseta presidia ao plenário.

Feitas as apresentações, passo a explicar porque me deixei avassalar pelos sentimentos que referi há 16 linhas atrás. Durante os seis anos que passei na faculdade e depois das horas que acumulei a ler trabalhos, artigos revistos por pares e a ouvir sumidades nas áreas da Biologia e não só (porque como os Biólogos trabalham toda a Vida, precisamos de disciplinas até “dizer chega”), ninguém me explicou que podia enveredar por caminhos dos quais pouco entendo. Foi preciso vir para a política para ouvir que sim, que podia e devia, com a desculpa de que mais vale dizer asneiras que estar calado.

A quem me dava esses conselhos, sempre disse que gostava de olhar para o espelho e ver um tipo a sorrir para mim todas as manhãs, o que não aconteceria seguramente se os seguisse.

E aqui entra o primeiro par antagónico de sentimentos: fiquei preocupado ao ler que os pássaros não são estúpidos, mas também fiquei contente por ter mais um exemplo prático de como não fazer política, o que vai ajudar-me a guiar o meu comportamento na Assembleia Municipal.
Senhor Secretário de Estado, permita humildemente que lhe aconselhe a mudar de assessores para a área do ambiente, pois não lhe terem explicado o que é um pássaro fez com que dissesse uma “inverdade” que, infelizmente neste país e para este país, se repetida muitas vezes passa a ser “verdade”. E os portugueses merecem mais do que acreditar que os bichos vão desviar-se sempre que um avião descola. É mais ou menos como repetirmos até à exaustão que ganhámos o Euromilhões sem tal ter acontecido.

E é então que me vem a irritação: como é que os cidadãos deste país ouvem e leem coisas destas e ficam calados? Como é que se ignoram especialistas que já demonstraram cabalmente ser a opção Montijo uma enorme asneira? Como é que alguém se pode achar no direito de decidir contra as opiniões de especialistas com provas dadas a nível internacional, colocando em risco vidas humanas? Mas logo me sinto aliviado: é que os “pássaros”, porque não são estúpidos (um dia poderemos falar sobre isso), vão acabar por adaptar-se! Afinal é simples, e andamos nós, os que queimámos e queimamos as pestanas a estudar estas coisas da dinâmica dos ecossistemas, preocupados. Como é que não nos lembrámos disto? É tão óbvio que até cega!

E senti-me estúpido porque sempre me ensinaram que as aves incluem em si 24 Ordens, sendo a dos passeriformes uma delas, englobando avezinhas de pequeno porte, a que nos habituámos a chamar pássaros. Imaginem o meu espanto quando percebi que me andaram a mentir! Sim, porque se um governante o diz, é porque está certo! Nunca ouviram nas conversas no metro a referência a “eles é que sabem”? Eu já ouvi e, infelizmente, o pessoal rege-se pelas máximas superiores de quem foi eleito. Há muitos anos, Orwell e Huxley escreveram sobre isto, lembram-se?

Mudando de agulhas, sabem seguramente os senhores governantes que o estuário do Tejo tem várias classificações internacionais que o colocam muito para lá da tutela exclusiva do nosso país. Nele pernoitam, abrigam-se, alimentam-se e reproduzem-se 194 espécies de aves, que na altura das migrações chegam a um total de efectivos superior a 140 mil! É muita ave e algumas bem grandinhas, como os flamingos, por exemplo. E mesmo que todas fossem pássaros, um bando tem “bué” deles.
Acontece que muitas das aves migram, fazendo-o para outros estuários e locais na Europa, pelo que uma perturbação no Tejo pode colocar em causa a estabilidade nesses lugares! Anda por aí, aliás, uma petição internacional com origem na Holanda contra a decisão incrível de adaptar a base do Montijo a aeroporto internacional.
A acrescentar a isto tudo há quem ache, e também anda na política, que esta decisão é uma forma de garantir que a ANA e os seus proprietários consigam lucrar o que necessitam nos 50 anos em que têm a concessão dos aeroportos nacionais, sem terem que investir num novo aeroporto para Lisboa, caduco e poluente e que viu uma cidade crescer à sua volta.
E para dourar a pílula, fala-se agora em alterar a lei para que tudo fique perfeito e na mesma linha do estudo de impacto ambiental, se é que se pode chamar EIA ao que foi produzido, aguardando-se ainda o estudo sobre segurança aeronáutica, atrasado, quem sabe se por ainda decorrer a auscultação das aves, numa tentativa de acordo para a deslocalização dos seus corredores de voo, eventualmente oferecendo-lhes Beja em detrimento do Tejo, bem mais quente e por isso menos propício a coronas-vírus.

Admitindo que a insensibilidade a questões ambientais é um direito, que o que pensam os contribuintes eleitores nada vale e que a posição dos municípios da zona é para contornar com nova lei feita à medida, será que o risco acrescido para os voos comerciais que utilizassem o Montijo não será suficiente para repensar a coisa?
Se um flamingo ou um colhereiro for sugado pelo reactor de um avião, mesmo que aos comandos esteja um Sullenberger, a probabilidade de andarmos a retirar destroços e vítimas do Tejo é demasiado real!
Admira-me por isso que os decisores deste país estejam dispostos a enfrentar as famílias das vítimas, provavelmente desculpando-se que afinal as aves eram estúpidas.

É que, como dizia um destes dias Bruno Dias, basta UMA ser estúpida!